O MELHOR AMIGO DO MEU PAI.

 

No dia 1 de Maio do ano que estamos a enfrentar, desloquei-me até à residência onde ocorreu, em 1981, o parto que me trouxe ao mundo dos vivos. Ao lado da nossa residência construída de tijolos artesanais “adobes” na década de 70, com paredes ainda firmes e sólidas, separada a aproximadamente quatro metros, está o aposento do mais velho André Gonçalves Cacombe.
A idade está a roubar as forças e o vigor que lhe eram peculiar, mas ainda envida esforços que preservam as suas inequívocas e inquestionáveis qualidades de um destemido trabalhador.
“Mandraque” era o pseudônimo que o meu pai lhe atribuira, não sei porque razão, mas sentia-se bem quando lhe chamava assim, ou seja, era um apelido que só o velho Didila usava como substantivo próprio para identificar o seu amigo, hoje enfermeiro reformado, residente na zona 4, periferia da inóspita vila de Bolongongo, portanto, o seu maior e quiçá melhor confidente de sempre.
Detrás das residências de ambos, quase ligadas, havia um muro construído de tijolos que fazia a cobertura numa extensão que se prolongava até à rua principal no sentido Norte, onde havia uma descasque de café. Era neste muro onde presenciei milhares de conversas dos velhos Didila e Mandraque, com cigarros acesos, incluindo aquelas ervas malucas de Malanje que consumiam na maior calma, como se de um AC, Marlboro ou Caricoco se tratasse.

As conversas, giravam em torno dos seus tempos de trabalhadores nas roças coloniais de café, as aventuras da mocidade, a guerra de libertação nacional, os tempos áureos do comércio interno, no regime de partido único e sobre a vida durante o período de cativeiro decorrente da guerra pós-eleitoral de 1992.
Ao lado, havia um rádio a pilhas, sempre sintonizado na frequência 1530 AM, cuja emissão vespertina da Voz da América, trazia o relato de vários acontecimentos políticos, econômicos e sociais do país e do mundo em geral. João Santa Rita e Ana Guedes, eram os jornalistas que mais me chamavam atenção, embora criança, porque gostava de ouvir rádio, mas foi o malogrado jornalista de Moçambique, Tome M’buia João que mais me cativava. Tinha um sotaque que eu apreciava imenso e uma capacidade intelectual incrível.
Historiador residente do Serviço em Português da Voz da América, passou décadas a ensinar-nos história de África e dos Estados Unidos. Profundo conhecedor da realidade política, social e económica americana, Tomé M´Buia João nasceu na aldeia de Chindio, distrito de Mutarara, na província de Tete, em Moçambique.

Neto de um régulo da era colonial portuguesa, Tomé era moçambicano de alma e coração, apesar das largas décadas nos Estados Unidos. Contava, com graça que, aquando do seu nascimento, como não se fazia o registo de nascimento com facilidade, não sabe quando nasceu. Apenas ao chegar à escola é que os missionários lhe calcularam a idade olhando a sua dentição.
Como muitos da sua época, frequentou o seminário e em 1964 os missionários enviaram-no para Roma, estudar na Faculdade de Teologia. Mas a poucos meses de ser ordenado, em 1966, abandona o possível sacerdócio e aporta nos Estados Unidos.
Fez licenciaturas, mestrado e o doutoramento pela sua venerada Universidade Católica da América. A sua tese de doutoramento, defendida em 1990, foi o resultado de grandes sacrifícios pessoais e familiares: “A Revolta de Dom Jerónimo Chingulia de Mombaça, 1590-1637: Um episódio africano no século do declínio português”.
Voltando ao tio André Cacombe, neste 1 de Maio, mal nos avistamos, convidou-me a entrar na sua singela residência onde sacou uma garrafa de vinho de palmeira, vulgo “maruvo” de bordão numa garrafa de litro e meio. A seguir, falou-me da sua solidão desde a partida do melhor amigo (meu pai) e posteriormente, portanto a mais dura, da sua esposa, dona Vitória, com quem vivera longos anos e construiu a família.
Tive que importar muita concentração para travar o cortejo de lágrimas que se concentrava nas proximidades dos meus olhos e impedir a exteriorização de fragilidade emocional que poderia afectar o tio Cacombe ao invés de o consolar.
Sobre o tio André Cacombe, tenho uma cena muito curiosa a contar. Se fosse o júri do prêmio Nobel, dar-lhe-ia como vencedor na categoria de Cidadão Corajoso.
Não vou contar agora, mas sim, no livro que está em “via de alho”.
O TURISMO FEZ-ME VOLTAR AO BOLONGONGO


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